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Reale: Julgamento de Bolsonaro cura ferida na democracia – 31/08/2025 – Poder


Foi com base em um projeto apresentado por Miguel Reale Júnior, como ministro da Justiça de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), que, quase 20 anos mais tarde, a Câmara dos Deputados elaborou e discutiu a lei pela qual o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) será julgado no STF (Supremo Tribunal Federal), acusado de tentativa de golpe.

Advogado e professor aposentado de direito penal da USP (Universidade de São Paulo), ele vê como positivo que o Brasil tenha revogado a Lei de Segurança Nacional e aprovado a que tipifica os crimes contra o Estado democrático de Direito em 2021 —apesar das críticas ao que classifica como açodamento na tramitação da proposta, com a qual contribuiu ativamente, junto a outros juristas.

Para Reale Júnior, 81, que foi ainda um dos autores do pedido que desembocou no impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff (PT) e chegou a protocolar também um pedido contra Bolsonaro após a CPI da Covid, o julgamento que começa nesta semana é um momento de cura e reafirmação da democracia e de seus valores, frente às ações que desaguaram no 8 de Janeiro.

“É uma ferida que fica na democracia brasileira, e ela precisa ser curada. A cura se faz por via do processo criminal, em que os responsáveis sejam julgados”, diz.

Crítico do lobby da família Bolsonaro por sanções junto a Donald Trump, ele diz ainda que a anistia seria uma “traição à democracia”, sob argumento de que nenhuma das hipóteses que, na sua visão, permitiriam a medida estariam presentes.

Ele entende, por outro lado, que caberia a condenação dos réus da trama golpista e do 8 de Janeiro apenas pelo crime de tentativa de golpe de Estado, pois ele já absorveria, a seu ver, o crime de tentativa de abolição do Estado democrático de Direito. A posição também é defendida pelo ministro Luís Roberto Barroso nas ações do 8 de Janeiro, mas não alcançou mais adeptos na corte.

O STF vai começar a julgar um ex-presidente e militares acusados de tentativa de golpe. Como o sr. define esse momento do ponto de vista político e jurídico?

É um momento muito importante de reafirmação da democracia brasileira. Nós estamos num período de consolidação da democracia.

Foi um choque ao país essas medidas que desaguaram no 8 de Janeiro. É uma ferida que ficou na democracia brasileira, e ela precisa ser curada. A cura se faz por via do processo criminal, em que os responsáveis sejam julgados com pleno direito de defesa, com contraditório, como está sendo.

O direito penal tem uma função primordial, que é a de reafirmar, através da sua aplicação, valores importantes que a lei protege e que foram feridos.

O sr. fala em cura. Uma parte da população não concorda com essas eventuais punições. Isso pode ser um desafio?

Na verdade, é uma minoria.

Quando se mistura política com paixão, e com religião também, cria-se uma ebulição que leva a posições radicais, não pensadas, não meditadas. Mas eu acredito que isso não interrompe de jeito nenhum o processo, nem terá possibilidade de avanço para uma eventual anistia. Acho que a anistia não corresponde de forma nenhuma ao sentimento brasileiro. A anistia seria uma traição à democracia.

Por quê?

A anistia tem razões que possam justificá-la. Uma delas é no sentido de que a forma como o fato foi praticado, ele não mais atinge a consciência cívica, o sentimento valioso que teria sido ofendido.

Também pode ter cabimento como processo de transição, ou seja, passagem de um governo autoritário para um governo de Estado de Direito –como aconteceu em 1979, ainda que com todas as falhas desse projeto.

A outra hipótese de anistia seria a pacificação. Mas não há pacificação. Os defensores da anistia não querem pacificação, querem impunidade. Com a pacificação, não se teria a violação da soberania brasileira e a busca de constrangimentos à economia brasileira. Não é uma guerra comercial, é uma guerra econômica, para pressionar decisões do STF, para pressionar decisões políticas internas do Brasil. A maior potência norte-americana, alimentada por Bolsonaro e seus filhos, faz coação e chantagem com o Brasil. Que pacificação é essa?

Em 2021, ao aprovar os crimes contra o Estado democrático de Direito, o Congresso adotou um projeto apresentado pelo sr. em 2002 como base. Agora com a lei em uso, qual balanço o sr. faz?

Esse projeto foi apresentado em 2002, realizado por uma comissão presidida pelo Cernicchiaro [ex-ministro do STJ], com a participação do Barroso. Tinha várias virtudes, [mas] precisava ser modificado, pensado. Eu fui surpreendido com o aparecimento de um interesse do [Arthur] Lira por votar esse projeto e com a votação de urgência.

Houve uma sorte de não estarmos com a Lei de Segurança Nacional para apurar o golpe de Estado de Bolsonaro. Senão nós teríamos sempre essa pecha. Porque o valor que estava sendo protegido ali não é a democracia, não é o Estado de Direito. Era a ideologia da Segurança Nacional, que prevaleceu durante o regime militar.

Evidentemente, existem vários problemas nessa lei [de 2021]. Mas dois tipos fundamentais, que são a abolição do Estado democrático de Direito e golpe de Estado, se amoldam, são suficientes para a proteção da democracia. Ou seja, a democracia tem que ser uma democracia militante, que defende a si mesma, que não é ingênua de imaginar que deve dar liberdade para que a liberdade seja destruída.

Qual balanço o sr. faz desses dois crimes, que estão sendo usados no julgamento?

Eles são crimes de empreendimento, em que não precisa haver efeitos, resultados materiais, basta o processo de tentar para que o crime se dê por consumado. É o chamado crime de atentado.

E eu tenho uma posição igual à do Barroso [nas ações do 8 de Janeiro]. Não vejo dois crimes que se somam. Vejo o crime de golpe de Estado absorvendo o crime de impedimento do exercício de poderes. Ou seja, o impedimento do exercício de poderes era um meio por via do qual se dava o golpe de Estado.

A defesa de Bolsonaro alega que em muitos dos fatos que a PGR traz na denúncia não há elementos que liguem diretamente ao ex-presidente. Como o sr. vê esse argumento?

É um argumento lógico da defesa. Aliás, a defesa é muito bem insinuada. Mas eu acredito que, no processo, existem elementos que podem contestar essa posição.

Quanto às conversas com os comandantes, a defesa alega, em linhas gerais, que seriam atos não puníveis e sem ameaça ou violência. O sr. avalia que essas conversas configurariam crime?

Sim. É uma grave ameaça você, como presidente da República, na sua condição de chefe das Forças Armadas, apresentar uma proposta de intervenção militar no TSE ou querer o estado de sítio, que não tinha cabimento nenhum, que exige uma situação que não estava presente de forma nenhuma. Isso é um subterfúgio. Já atinge o bem jurídico democrático.

Há críticas de que o ministro Alexandre de Moraes teria participado de uma forma muito proativa ao longo da investigação e que isso teria impacto na imparcialidade. O sr. concorda?

A turma já decidiu diversas vezes pela competência do Alexandre de Moraes para a condução do processo. Eu creio que é o estilo dele um pouco Ministério Público, de onde ele é oriundo, mas não há incompetência dele ou impedimento. Porque senão todos estariam impedidos. O que foi ferido e lesado ali não foi um ministro, foi o STF.

E o sr. tem alguma crítica?

O problema da consunção [absorção], porque eu creio que é um crime só. E acho que as penas são muito elevadas também. Poderia haver uma redução da quantidade de pena [aos condenados do 8 de Janeiro] talvez por uma revisão criminal.

Eu talvez teria dado mais tempo para a apreciação das provas. Não que isso crie nulidade, mas acho que o tamanho do processo e o conjunto tão elevado de elementos probatórios exigiria que se concedesse mais tempo, tanto para o Ministério Público quanto para a defesa.

O sr. concorda com os que sustentam que o julgamento do ex-presidente deveria ser no plenário?

Não, porque isso está no regimento interno. Faz tempo já que foi decidido que os processos criminais são julgados pelas turmas. Isso não é uma decisão que foi tomada para esse processo.

Há quem argumente que, pela previsão de que o presidente é julgado pelo plenário, isso também deveria se aplicar ao ex-presidente.

Não vejo nenhuma analogia que se estabeleça.

Quanto ao questionamento das urnas por Bolsonaro, há quem faça referência ao episódio com Aécio Neves, em 2014. Como o sr. vê hoje o pedido de auditoria das urnas feito na ocasião?

Eu acho que ali era um engano do Aécio, efetivamente um engano. Mas não foi ali que se estabeleceu uma política de descrédito do processo. Houve uma arguição, mas não houve uma política de desfazimento da validade, da legitimidade do processo eleitoral.

E o sr. vê como um engano por quê?

Porque eu acho que ali não tinha elementos suficientes, tanto que foi rejeitada essa arguição.

E também não teve essa repercussão efetiva, não teve movimento popular, não foi assolada a população, os seus correligionários contra o TSE, contra o processo eleitoral. É diferente. Não foi uma exploração de descrédito da instituição.

Pode ter plantado uma semente?

Não precisa, né? Essa semente estava correndo o mundo.

Em 2022 o sr. declarou voto no Lula ainda antes do 1º turno. Qual o balanço que o sr. faz do governo?

É triste o balanço na medida em que não houve a possibilidade de efetivamente um governo de união e uma ideia de governo, quer dizer um plano de execução do governo. E ficou perdido em algumas guerras desnecessárias, como a guerra contra o Banco Central, inimigo do Roberto Campos [Neto], ou seja, pequenas guerras que só prejudicaram o país.

O sr. foi filiado ao PSDB por mais de 25 anos. Como que o sr. vê a trajetória do partido, que esse ano perdeu seu último governador?

O PSDB foi um partido que nasceu de cima para baixo. Ele nasce na Constituinte com grandes líderes. Eles foram morrendo ou envelhecendo e não houve substituição. E não se criou uma base. Foi um partido constituído dentro da Constituinte para se opor ao Quércia e ao presidencialismo.

Em 2022, quando o sr. declarou apoio ao Lula, a então presidente do PT, Gleisi Hoffmann, afirmou que ‘várias pessoas’ que participaram do impeachment [de Dilma] avaliavam ‘que aquilo foi um erro’. O sr. concorda?

Ela não entendeu nada. Não tinha nada a ver com arrependimento, com impeachment. Eu estava dizendo que votava no Lula porque tínhamos que nos unir contra o malefício do Bolsonaro.

Era um processo de salvação do país do desastre que era Bolsonaro. E o risco que era um segundo turno. Infelizmente, o segundo turno veio e foi um sufoco.

O sr. faz alguma ressalva ou vê com outros olhos como foi o processo do impeachment?

Não. As pedaladas levaram o país à maior recessão da sua história. Se não tivesse havido o impeachment, mas a continuidade de Dilma, o país tinha afundado.

O sr. avalia que, da forma como foi feito, esse processo teve influência no que aconteceu nos anos seguintes?

Não, eu acho que nós estamos esquecendo que existiu um governo Temer, que estava fazendo algumas medidas benéficas, mas que se complicou no processo de corrupção. E aí deu, sem dúvida nenhuma, azo à antipolítica que já vinha desde 2013.

Raio X | Miguel Reale Júnior, 81

Advogado e professor titular aposentado de direito penal da USP. Foi ministro da Justiça no governo FHC, em 2002, e presidente da Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos, de 1995 a 2001. Também foi secretário de segurança pública de São Paulo em 1983 no governo de Franco Montoro. Foi um dos autores do pedido que levou ao impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff (PT) e assessor especial presidência da Assembleia Constituinte.



Fonte: Folha de São Paulo

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